Preconceito, Pós-conceito e Racismo

"O negro vive numa ilha de pobreza, cercado por um oceano de riqueza, exilado em sua própria terra." (Martin Luther King Jr.) 

Ao me inscrever na disciplina Filosofia Contemporânea IV, não sabia o que seria tratado, até que colegas da Universidade me disseram que, talvez, pela primeira vez, estivéssemos iniciando estudos, de forma séria, acerca de uma filosofia do negro ou filosofia da África.

Apesar de conhecer alguns autores negros, principalmente da área da Geografia, por ter cursado Licenciatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, jamais tive contato com algo semelhante ao que li de Achille Mbembe. Suas teorias do “devir-negro”, que diagnosticam e apontam para uma realidade que reflete o passado (ainda presente) escravista e segregador, me fizeram voltar a pensar a questão do Negro, enquanto jovem negro.

Desde criança, recebia um tratamento reconhecidamente diferenciado das pessoas, seja no sentido negativo (segregação, percebida anos depois) ou pseudo-positivo - uma espécie de amparo às minhas “naturais dificuldades” (pelo fato de ser negro). Porém, eu não me entendia como um ser diferente dos demais, mas também não via os outros como semelhantes. Para mim, cada um era uma pessoa, um mundo, independente, sem rótulos, formas, cores ou grupos (x, y, z); Quando alguém agia de modo negativo comigo ou me agredia, eu jamais pensaria que a motivação daquilo era a cor da minha pele.

Tenho memórias de, ainda na alfabetização, um colega de classe que sempre ficava apontando na minha direção, rindo e dizendo: “Olha ele é escurinho!” – Na época, eu não sabia qual era o motivo da graça e nem porque ele fazia isso comigo. Lembro de perguntar a minha mãe o porquê dele agir daquela maneira e a resposta dela foi: “Ele age assim porque ele é kardecista”! Esta foi a resposta que eu dava a todos os meus colegas quando vinham me perguntar por que eu era alvo das risadas daquele menino. - Eu nem sabia quem era Kardec; afinal, nem minha mãe parecia conhecer.

Eu sempre estudei em colégios particulares, vivi realidade de pessoas brancas, sempre com bolsas de estudo, por duas razões: Porque meus pais não poderiam pagar aquele tipo de colégio e porque as minhas notas eram as melhores. Ser o melhor aluno da classe e pertencer ao time da escola durante o Ensino Fundamental e Médio, me permitiu portas abertas a qualquer tribo da escola e salvo-conduto com os professores. Tudo isso me construiu como uma persona popular e inteligente; todavia, fora do comum. Isso porque, hoje, percebo que meus colegas não associavam minhas boas notas e meu bom proceder a esforço, dedicação, ..mas sim a algum milagre ou força extraordinária. A marca desta reflexão são os apelidos que eu carregava, que sempre me “comparavam” a algo sobrenatural, extraterreno, ou divindades das mais diversas.
Eu não era um garoto branco (normal), que tirava boas notas e era bom nos esportes, como havia vários na escola, meninos e meninas; eu era diferente e por isso algo sobrenatural deveria justificar aquela minha situação.

Recentemente, pude entender uma outra face daquela minha “condição especial” durante os tempos de escola. Conversava com uma amiga sobre minha vida escolar e ela me perguntou se eu tive muitas namoradas, por conta da popularidade no colégio. Eu respondi que era quase um milagre alguma menina se interessar por mim. Eu costumava pensar que era a minha “incompetência” no jogo do amor que me fazia afastar as meninas, que eu não reconhecia os “sinais” emitidos por elas. Mesmo assim, ainda naquela época eu questionava: Por que um jovem inteligente, educado e admirado não tinha um olhar apaixonado por ele vindo de lugar nenhum? Eu já sabia da boa fama dos meninos de má fama e a inclinação que minhas colegas tinham por eles, mas será que nenhuma teria um outro critério que a fizesse olhar para mim? Foi então que minha amiga, com quem conversava sobre isso disse: Maurício, você não tinha namorada porque você é preto!



A resposta simples e verdadeira soou engraçada, mas depois tornou-se um convite à reflexão: Que tipos de ideias estavam por de trás das atitudes daqueles colegas? Quão grave é este tardio reconhecimento da minha vida sob o olhar do outro, um olhar preconceituoso?

Tenho uma tia, negra, formada pela UFF na década de 80, advogada em Barcelona, na Espanha, há 30 anos. Ela já foi líder do movimento negro no Rio de Janeiro, jurada do carnaval do Rio de Janeiro e conhece muitas pessoas, principalmente do meio artístico, militantes desta causa. Contudo a distância que ela morava não me fazia ter muito contato.
 Ou seja, apesar de mergulhado nela, a Questão do Negro, para mim, nunca foi uma questão. Como disse anteriormente; para mim, as pessoas eram seres independentes e as suas atitudes em relação a mim, eram entendidas como ações particulares e não um resultado de uma ideologia, cosmovisão, discriminação. O esquecimento de ser preto, tão surpreendente quanto a resposta da minha amiga, mostra a distância que eu vivo da bandeira do movimento negro.

Lembro de ter assistido o filme: The Eye of the Storm, com a professora Jane Elliot, ainda no Ensino Fundamental. Eu era muito jovem, devia ter 15 anos de idade, e não pude absorver a preciosidade daquele filme, apesar de ele jamais ter saído da minha memória. Mas o que a professora Jane Elliot desejava transmitir com aquele experimento estava longe do meu entendimento sobre o funcionamento da sociedade. Algo que só passei a compreender quando entrei na UERJ e conheci professores que eram teóricos da área e/ou militantes das questões do negro. Eles me apresentaram autores, também militantes, que me influenciavam pensar este tipo de coisa.

Contudo, o discurso da militância acadêmica me é enfadonho, utópico e, quando procedente, apresenta algo que exatamente igual a aquilo que eu "deveria" combater. Eu passei todo o meu período escolar tirando as melhores notas, o que já não estava ocorrendo na universidade, e eu ainda não entendia o porquê (alguém desconfia? - Respondo: eu não sou negro suficiente). Tal dificuldade me fez não gostar do discurso das militâncias e, principalmente, da forma como as pessoas se envolviam naqueles tipos de ideologias. Mais uma vez, me afastava da questão do negro.

Contribui para isso o fato de ter nascido numa família cristã protestante tradicional e ser, também dentro da igreja, um prodígio, um “especial”. Antes de entrar na universidade, eu já tinha uma cosmovisão bem fundamentada nas doutrinas da teologia, diferente da maioria dos cristãos que conhecia, que quando chegavam no ensino superior e tinham seus valores e/ou crenças questionadas e optavam pela “rebeldia” aos ensinamentos que trouxeram consigo. No meu caso, foi justamente o oposto. Ao entrar na UERJ e depois na UFF, obtive mais ferramentas para a compreensão da teologia e visão crítica da doutrina Cristã.

Até que, sufocado pela “necessidade de me posicionar", mostrei que sou militante quando exerço o amor (altruísmo), justiça e valores semelhantes aos daquelas bandeiras de temas específicos. Assim, compreendi que o cristianismo é “militar” (FIGHT!) todas as bandeiras, sem ter de se associar a nenhuma, sem o risco de fazer acepção de causas justas. 

Sou professor na Igreja Batista há 18 anos. Todo Domingo pela manhã, durante cerca de 1 hora, ensino o melhor do Cristo para todos os que buscam, seja o Cristo, seja Justiça, seja Conhecimento, seja Fé, seja o que for. Esta é a forma que eu poderia contribuir, verdadeiramente e com esperança, para as lutas das chamadas minorias e a questão da pele negra tem sua posição no meu discurso teológico. Me apoio no registro da carta de Paulo aos Romanos, capítulo 12, onde se lê: “Não tomeis a forma deste mundo, mas transformais-vos pela renovação da vossa mente. Para que experimenteis a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.

Assim, e só assim, encontro uma razão para militar; um olhar sensível às pessoas e também a mim mesmo. A despeito da forma e ações pecaminosas e por vezes diabólicas da instituição Igreja (ou igrejas no caso protestante), tento transmitir os ensinos do Cristo de maneira direta, dentro da sua própria poesia, sem a intermediação das doctrinas, sem o abuso do neoplatonismo, revelando as manipulações das próprias organizações eclesiásticas e pensando nas questões da vida (desta aqui também). Vale lembrar que tive o privilégio de lidar com os teóricos do capitalismo, na UERJ, e sei o quanto faz bem ao cristão conhecer; ao menos, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo de Max Weber, a relação do protestantismo e a história dos Estados Unidos, bem como sua ascensão no entre Guerras. No Brasil, nos primeiros anos do Século 21, a política fortemente inclinada ao protestantismo evangélico de massa. Fato que, em 2018, assistimos o primeiro pronunciamento do presidente eleito sendo precedido de uma oração! Tamanha conivência da religião com a política, só numa teocracia.

Diante desses absurdos, anátemas e blasfêmias, Sigo lecionando, especialmente, a jovens universitários, estimulando-os a pensar sobre sociedade, seu funcionamento, complexidades e, como o Cristo pode ser a referência de militância, resistência e mudança de mentalidade da sociedade. Contudo, por vezes falho por ser um insider no mundo branco, mesmo que por conta dessa ideia de que os ensinamentos do Cristo são universais (e por isso é imperativo que sejam levados a todos, sob a pena de...). Tenho que lidar com assimilações (embranquecimento) impostas pela cultura. No meu trabalho, por exemplo, faço palestras para turmas de MBA, Chefes de Estado ou autoridades governamentais, empresários, visitantes de várias partes do mundo. Em algumas ocasiões, os olhares direcionados a mim antes das palestras são de desconfiança. - Certa vez me perguntaram a que horas o palestrante chegaria, enquanto eu configurava a apresentação no telão. E, apesar de, ao final da minha fala, todos ficarem satisfeitos e/ou impressionados com o tipo de trabalho que é feito, o sentimento dos apelidos que eu recebia na escola retorna. – Ouvi da delegação da Governadora de Tokyo que eu era o “Obama brasileiro”. Ou seja, algo icônico, diferente do comum; porque um negro não saberia falar o idioma Japonês do ambiente executivo.

As questões do negro permanecem em pauta, independente de uma “militância universal para o bem”. Eu sei que uma pessoa convertida ao Cristo vai ter a sua mente transformada e vida mudada, porém é muito mais difícil para este neófito se desconectar da sociedade da forma que o próprio Cristo propõe. O Jesus histórico, pelo pouco que conhecemos, foi extremamente radical. E foi morto por isso. Como muitos e muitas na história. A agressividade, ainda que não letal (se bem que na maioria das vezes o é) com as mulheres, negros, gays, lésbicas, deficientes físicos, não se combate apenas com o amor ao próximo, é preciso denunciar; entrar pelo templo e chutar barracas e cambistas. Se não for assim, permanecerei na utopia que outrora acusava os professores da UERJ.

Por isso, penso ser necessário uma disciplina que fale das Áfricas, que nos aproxime do que se pensa lá, do que se pensa aqui, no interior do Brasil, só assim nós (negros, latinos, mulheres, gays,...) deixaremos de ser tratados como exceção a “regra”, pois não há regra alguma. Achille Mbembe me fez pensar na urgência da militância, usando história do negro como paralelo, para um pensar de cunho profético acerca da realidade da sociedade. O autor, de forma brilhante, não só nos trechos de a “Crítica da Razão Negra” que lemos em aula, mas também nas palestras que assisti dele e sobre ele no Youtube, me fez entender o quão distante estava da razão da minha própria militância. Da mesma forma que Achille Mbembe escreve em seu livro e, no livro sagrado, vemos um inevitável Apocalipse, acrescentando a didática única que Gene Elliot usa em seus workshops; não consigo enxergar em outro tipo de militância que possa ser fonte de “salvação” para o corpo e para a mente das pessoas se não o permanecer lecionando, influenciando e acusando (de dentro) aquilo que possa violentar algum semelhante.

Concluo, relatando algo que na época foi motivo de piada, mas hoje compreendo a profundidade do que foi dito. Durante uma aula na UERJ, líamos um trecho de “O Capital” e um colega de classe perguntou ao professor:

- Mestre, quando tais teorias forem postas em prática e toda a sociedade se “estabilizar”, o que vamos fazer?

O professor respondeu prontamente:

- Iremos fazer poesia!

Todos na classe riram.

Hoje, sou um professor que fala sobre poesia, ensina pessoas a ler mitos e a crer (dar crédito) em utopias. Assim experimento dia-a-dia o recriar (poético) da minha vida. E, se há um Deus, Sua vontade deve ser boa, perfeita e agradável e, mesmo que estes critérios sejam humanos, que sejam “inacessíveis”, que estejam lá para que eu continue caminhando olhando para frente.

Bibliografia:


WEBER, Max (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo:
Companhia das Letras (Tradução de José Marcos Mariani de Macedo).

MBEMBE, Achille, Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014;
Workshop de Achille Mbembe no Franklin Humanities Institute (FHI) da Duke
University, em 27 de abril de 2016. Achille Mbembe - Frantz Fanon and the Politics of
Viscerality https://www.youtube.com/watch?v=lg_BEodNaEA&t

The Eye of the Storm, Diretor: William Peters, Produção: American Broadcasting
Company (ABC), Estados Unidos, 1970, VHS