Sindel

Acordei, olhei pela janela e vi minha avó paterna com meus tios na varanda da minha casa...

- Por que eles estão aqui? Certamente outro acidente de trânsito com meu pai. Ele deve estar num hospital ou coisa assim.

Olhei novamente e vi parentes mais distantes...

- A coisa deve ter sido feia! Meu pai deve estar muito mal!

Sai do meu quarto, fui ao banheiro e de lá para a cozinha. Fiz um café para a galera; e até o momento ninguém tinha me visto.

Marize acordou, passou por mim e foi lá fora. Minha mãe entrou na cozinha e disse, com a voz trêmula e insegura:

- “Oi, meu filho.”

Minha prima Priscila entrou em casa e me chamou para conversar. Eu esperava ouvir dela detalhes do acidente e saber do estado do meu pai. Mas nem cheguei ouvir palavra alguma ao olhar nos olhos dela...

Meu pai morreu!

Não senti nada na hora, bem do jeito que meu pai me ensinou. E eu já esperava tal coisa. Comecei a lavar a louça e pensar no futuro. Pensei em todos os amigos e familiares e na minha contribuição para que isso fosse mais leve para cada um, afinal ser um prodígio intelectual traz responsabilidades, mesmo para um adolescente de 13 anos.

Com a vida de todos “ensaiada”, enxaguei o último prato e passei a pensar em mim. Há duas semanas tinha conquistado um amigo, o meu primeiro amigo; era o meu pai. Antes disso nossa relação era outra. Maravilhosa, mas não era amizade. Pensei no meu maior medo, a solidão.

No silêncio, fiz uma oração: 

“Queria algo que pudesse ser minha alegria após a morte do meu pai.”

Interrompido por minha mãe, já sabendo do ocorrido, recebi um abraço e a segurança que outrora era ausente.

Meu vizinho, Sérgio, me chamou para ficar em sua casa. Na varanda, fiquei conversando com os mitos que me acompanhavam há uns meses, me ensinando sobre o valor que tem a alma dos humanos; pelos quais eu era apaixonado.

Mais tarde, pude sorrir ao ver tanta gente no enterro do meu pai e receber mais conforto do que eu procurei dar às pessoas que o conheciam. Ouvi histórias, piadas, lendas e outras coisas acerca dele.

Contive o choro quando a primeira pá de terra foi jogada sobre o caixão. Senti como se as pedras tivessem caído sobre mim... “Ele não está ali, diziam os deuses, lembre-se da alma.” 

Então pude respirar e me retirar.

A volta para casa foi junto com o entardecer.

..

Eu sempre ía para Campo Grande nas minhas férias, porém nunca ficava casa do meu tio Clério; não sabia o porquê, apenas fui uma vez e foi bom...

{Neste dia, eu e meu tio Eudes fomos, com uma pipa no alto, do Morro da Estação Elevatória do Lameirão até a casa do meu tio Clério, do outro lado do bairro de Santíssimo, passando por vários lugares (“cortando e aparando”), inclusive da passarela da linha do trem. No final da tarde, pedi para dormir lá e pude conhecer uma tia que era divertida, primos adoráveis e um tio que apesar de fechado, tinha um coração tão grande como o do meu pai. Ah! Tinha um sorvete que vendia na esquina. Eu até paguei um sorvete para uma amiga da minha prima, uma das vizinhas, mas não lembro o nome dela, só sei que era linda - suspeito tratar-se da própria Cidinha!}

... mesmo estranhando, fui convidado a ficar com a família do meu tio Clério por uns dois dias, após a morte do meu pai, até chegar o feriado, quando todos os familiares se encontrariam na Ilha da Gamboa, em Itacuruçá, lugar onde passaríamos o Carnaval, como foi no ano anterior.

..

Com a mochila pronta, entrei no carro e me acomodei. Olhei pelo retrovisor e vi uma saia preta de crochê em contraste com lindas pernas! 

Minha tia Eliane pediu para eu sair do carro e dar lug-g-gar à “Cidinha”.
“As sandálias impediam que ela tocasse o chão com os pés; sua saia negra e sua blusa branca acenavam concordantes para a harmonia do universo. Seus cabelos longos e castanhos dançavam como se os próprios deuses cuidassem de seus movimentos. E seus olhos eram como um presente inesperado. Era a resposta à minha oração.”
..

Após minha tia contar todos os meus prodígios infantis durante a viagem, chegamos à Ilha. Encontrei os meus parentes, mas agora numa outra situação. Havia também algumas pessoas da igreja da minha tia Deise, amigas da minha prima, que coloriram o Carnaval dos jovens que ali estavam.

Nessa onda de novas amizades coloridas, por dois dias fui à praia que fica do outro lado da ilha com os jovens para tentar algo com alguém. 

Na segunda noite, conversávamos na entrada da casa, olhando para o mar recuado pela maré baixa. Uma pergunta da minha tia Gene interrompeu as falas: “Por que o mar sobe e desce? Como funciona esse negócio de maré alta e baixa? Não é estranho?”

Cidinha, chegou e sentou numa espécie de carrinho de mão em que eu estava. Fizeram a tal pergunta a ela e ela orientou que perguntassem para mim.

Respondi tal como um Geógrafo que futuramente seria.

Após a aula, os jovens voltaram a conversar - sobre bactérias que se transmitem durante o beijo na boca.

..

De manhã, vi que os jovens me deixaram para trás; afinal, de que adianta um "gênio da lâmpada" que não realiza nem seus próprios desejos?
Fui para outra praia com minha mãe, minhas tias, minha irmã, as crianças e a Cidinha.

No caminho, perguntei o nome dela. Ela disse que não gostava do seu nome, então pedi que não me dissesse. Perguntei como ela gostaria de ser chamada. Ela não soube responder. 
Olhei para ela: Seu traje de banhou roxo, seus cabelos com mechas descoloridas e seus olhos falantes...

- Sindel! Posso te chamar de Sindel?

- A do Mortal Kombat?

- Sim essa mesmo! Você a conhece?

- Você acha que combina comigo? Você gosta dela?

- Sou apaixonado por ela!

..

Após contar a história da personagem do game e a minha relação com Mortal Kombat, fui para água ensinar minhas tias a nadar. Sindel veio depois e me pediu para ensinar como boiar.
Conversamos bastante ali na água e falamos da morte de nossos pais; o pai dela havia morrido há poucos dias também.

Voltamos mais cedo da praia para tomar banho mais rápido, afinal era um banheiro só para muitos.

Sindel demorava muito no banho. Quando as meninas da igreja voltaram do outro lado da ilha com meu tio e meus primos, se irritaram com a demora no chuveiro.

 Enquanto eu ajudava a montar os sanduíches na cozinha, pude ouvir a briga entre as mulheres.

Com a discussão daquela noite, o grupo de acampantes se dividiu. De manhã, me chamaram para ir ao outro lado da ilha. 

Eu disse não, escolhi ficar com a Sindel, afinal eu sempre a escolhia mesmo!

Já “maldando a coisa” e querendo dar um empurrãozinho, minha avó Marize me deu R$ 2,50 e sugeriu que após a praia eu parasse para ‘comer um pastel’ com a minha amiga. 

Assim eu fiz. Foi o meu primeiro encontro, a primeira vez a sós com uma garota.
No dia seguinte ela foi embora. Despedi-me feliz, grato ao Criador!
Todavia, tudo ficou sem graça, sem sentido. Para mim, até hoje, a ilha não é a ilha sem Sindel.

..

De volta à Niterói, orgulhoso, contava aos meus amigos sobre Sindel toda a noite. Até que no dia 22 de março, às 22:42h ouvimos o telefone tocar lá em casa. Meu coração bateu forte.  Não entendi, mas bastou apenas 5 segundos e minha mãe gritou: - Mauricio!!!

O recém adotado sistema de cartões expandiu o número de telefones públicos e agora tinha um na rua da casa da Sindel.

- “Vou poder ligar para você sempre.”

- (...)

- Quero te convidar para o meu aniversário, é dia 19 de abril.

..

Eu fui: no aniversário e em todos os “desaniversários”! 
Sempre fugia da escola às sextas-feiras e viajava para lá, para poder ficar perto dela. Tinha a casa do meu tio Clério para poder dormir, comer, meus primos para poder ‘brincar’, minha tia Eliane para poder conversar e ao final de 2 anos, eu já tinha a chave da casa deles.
..

Sindel já era frequente nas festas da família. Todos perguntavam para mim sobre ela e vice-versa. No aniversário de casamento dos meus tios Cleuber e Eloísa, tivemos uma mesa reservada para nós! Lembro-me de como ela estava linda naquela noite! Ela se arrumou para mim, do jeito que eu gosto.

Não poderia perder aquele momento, então eu a convidei para dar uma volta fora do salão.
(Meu primo Igor, que apesar de criança, ouvia meu coração bater forte pela vizinha dele, foi quem mais me ajudou neste dia: Me beliscou para elogiá-la quando saímos de casa e antes que deixassemos o Salão de Festas, me entregou a chave do carro para que pudessemos ficar lá no estacionamento.)
Após conversar um pouco e de ficar em um longo e irritante silêncio. Tomei coragem e disse a ela que a amava e que gostaria de tê-la como minha namorada... E com muito jeito ela disse:

- “Não Mauricinho, você ainda é novo (Sindel é 3 anos mais velha que eu), gosto de você, mas não seria bom para nós dois.”
..

Após ouvir o juízo da minha rainha, pensei que poderíamos.. sei lá, um dia talvez.. mas não; não aconteceu.
Na ocasião, prometi a mim mesmo que a encontraria 10 anos depois; agora sim, mais velho, com casa, carro e o mesmo convite.
..

Passados 10 anos, eu estava pronto. Fui até lá numa quinta feira de agosto, após ouvir tantos conselhos e a voz do Criador no culto de quarta-feira, por Ana Beatriz. Fui de trem e peguei uma chuva absurda da estação até a casa dela. Fui recebido pela rainha mãe, D. Maria Francisca, uma pessoa de Deus que tem minha admiração eterna!
Sindel apareceu trazendo uma toalha para me secar...

- O que aconteceu? São três horas da tarde!

- Vim dizer que não esqueci a minha promessa.

- Ah, Mauricinho, você é maravilhoso, mas precisa me esquecer!

- Depois do juízo, uma ordem?

- Uhum.

- Me desculpe, eu achei que..

- Não vai ver sua tia?

- Não, tenho que voltar para Niterói.
..

Foram 10 anos maravilhosos! De fidelidade, de santidade, estudos (muitos estudos), paciência e todas as virtudes adquiridas para ser o homem perfeito!

Eu obedeci... Pude esquecê-la com a própria força da minha “maldita constância”.

No final de tudo, foi bom para mim! Do jeito que ela disse que seria.

Quem me conhece, conhece essa história. Quem não conhece, acaba de me conhecer.

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